Exploração de petróleo no pré-sal traz dilemas na era da crise climática

06/11/2009 17:47

                                   Petrobrás quer ‘devolver’ CO2, mas para isso precisa aprender a separá-lo.
Atividade também demanda novo impulso científico no Brasil.

 

 

Foto: Divulgação/Petrobrás

 

Nas décadas de 1970 e 1980, era comum ouvir que o petróleo do mundo iria se esgotar por volta do ano 2000. O Pró-Álcool, por exemplo, que hoje coloca o país em posição de destaque na corrida mundial por biocombustíveis, foi fortemente motivado por essa premissa, hoje aparentemente equivocada. Quase dez anos depois do que seria o triste fim dos combustíveis fósseis, o “ouro negro” tem aparecido em toda parte. A descoberta de imensas reservas de óleo e gás na Bacia de Santos (litoral paulista), em profundidades que variam entre 4 e 7 quilômetros abaixo da superfície da água, o chamado pré-sal, é um exemplo disso.

 

E o Brasil não está sozinho. Para provável desencanto dos que acompanham as discussões sobre aquecimento global e mudanças climáticas, pelo menos 200 novos campos foram descobertos só neste ano em diversos países, vários deles de grande porte e em águas profundas.

 

Quem apostava no esgotamento das reservas de petróleo não contava com os avanços tecnológicos que viriam nas décadas seguintes. Naquela época, só mesmo quem tinha intimidade com o passado remoto da Terra poderia suspeitar de grandes quantidades de hidrocarbonetos (petróleo e gás) presas em rochas muito abaixo do leito marinho, à espera de meios adequados para sua detecção e extração. Eram os geólogos e geofísicos das companhias petrolíferas, que, por razões óbvias, trabalhavam sob estrito sigilo. Agora, suas previsões estão se confirmando. 


Modernas tecnologias levaram à descoberta de imensas reservas de petróleo no Brasil e no resto do mundo; extrair óleo e gás de grandes profundidades é uma difícil missão para geólogos e engenheiros e um dilema para um planeta em mudança climática


Esse petróleo profundo não estaria vindo à tona se não fossem os aperfeiçoamentos numa tecnologia de prospecção que tem permitido “enxergar” mais nitidamente as partes menos acessíveis da litosfera: a sísmica de reflexão. “Seu princípio é semelhante ao do ultrassom usado na medicina”, compara João Carlos Dourado, professor de geofísica do Instituto de Geociências e Ciências Exatas (IGCE) da Unesp em Rio Claro.

 

É semelhante também ao sonar de morcegos, baleias e golfinhos. Ondas mecânicas, com frequências entre 10 e 200 hertz, são emitidas na superfície do mar e atravessam, além da lâmina d’água, as diversas camadas de rocha abaixo dela. Parte dessas ondas é então refletida, como um eco, e captada por sensores. Depois, softwares processam esses dados, convertendo-os em imagens, explica Dourado. O método, contudo, não é isento de impacto ambiental.

 

“Os avanços na sísmica de reflexão foram premissas básicas para o sucesso exploratório do pré-sal”, diz Marcos Francisco Bueno de Moraes, geofísico da Petrobras. No caso brasileiro, o grande desafio era conseguir visualizar através da camada de sal – situada mais de 1 km abaixo do leito marinho e com até 2 km de espessura – sob a qual se escondiam as jazidas.


Ainda que todo o CO2 do pré-sal seja reinjetado no fundo da Terra, o destino do óleo e do gás que vêm dele é serem queimados, gerando CO2 que será liberado por escapamentos e chaminés na atmosfera 

 

Egresso do curso de geologia da Unesp em Rio Claro, Moraes especializou-se em geofísica e foi o responsável pela interpretação dos dados sísmicos que levaram à descoberta de Tupi, até agora a principal vedete entre os nove blocos exploratórios na Bacia de Santos e o primeiro a entrar em fase experimental de produção. Estima-se que, apenas nele, o volume recuperável de óleo e gás, isto é, a quantidade que se julga viável extrair, varie entre 5 bilhões e 8 bilhões de barris, o que eleva as reservas da Petrobras em pelo menos 50%.

 

Embora sua existência só tenha sido divulgada em junho de 2006, o potencial de Tupi já era conhecido pela companhia desde os anos 1990. Só faltavam os meios para confirmá-lo, explica o geofísico. Foi por isso que, segundo Moraes, com o fim do monopólio em 1997, a Petrobras teve o cuidado de adquirir, via licitações da Agência Nacional do Petróleo, a maior parte dos direitos de exploração do bloco (65%).

 

Conspiração do petróleo
De forma geral, as bacias sedimentares da costa sudeste brasileira, como as de Santos, de Campos e do Espírito Santo, há tempos são vistas pelos profissionais do petróleo como áreas de grande potencial para exploração ultraprofunda. “Há milhões de anos, essas bacias eram grandes lagos, onde houve uma explosão de vida microscópica”, explica Dimas Dias-Brito, professor de geologia da Unesp em Rio Claro. Os geólogos farejam petróleo onde, em tempos remotos, houve acúmulo de matéria orgânica, principalmente se ela ficou longe do oxigênio e de bactérias que degradam hidrocarbonetos, como é o caso das bacias.

 

  • Aspas

    Com os recursos advindos da produção do petróleo do pré-sal, o Brasil poderá investir de forma consistente em programas tecnológicos para geração de energia ‘limpa’. Isso nos permitirá ingressar de maneira mais robusta na fase pós-petróleo"

Para entender como se formou o petróleo do pré-sal é preciso retroceder ao período Cretáceo, há mais ou menos 130 milhões de anos, quando os dinossauros perambulavam pela Terra e o planeta não era exatamente como o conhecemos hoje. O Atlântico Sul ainda não existia, porque a América do Sul e a África formavam um só bloco, com a Antártida, a Austrália e a Índia. Os geólogos chamam esse megacontinente ancestral de Gondwana.

 

A paisagem começou a mudar quando as placas tectônicas sob Gondwana entraram em movimento, abrindo uma fissura entre o que hoje são as costas brasileira e africana. Inicialmente, essa fenda foi drenando os cursos d’água das redondezas, e, com a ajuda das chuvas, formaram-se enormes lagos. Fitoplânctons encontraram ali condições ideais para viver e se reproduziram de forma extraordinária ao longo de alguns milhões de anos, período suficiente para uma enorme acumulação de matéria orgânica morta, misturada a argila, no fundo dos lagos.

 

Conforme as placas tectônicas continuaram se afastando, a fenda cresceu em largura e os lagos foram ficando cada vez maiores e mais fundos. A abertura já era tanta que, a partir de um certo ponto, águas oceânicas começaram a invadir a região. E com o mar, veio o sal. Como quase tudo em geologia, o processo durou muitíssimo tempo: por volta de 20 milhões de anos.

 

Em algum momento desse período, provavelmente já na presença de água marinha, cianobactérias habitaram o local em grande quantidade. Como resultado de seu metabolismo, elas excretavam carbonatos de cálcio e magnésio, que acabaram se precipitando para formar o que hoje se conhece como rochas carbonáticas microbianas. Depois, mais uma colossal quantidade de sal se depositou sobre esse material. Com a formação completa do Atlântico Sul, tudo foi parar a vários quilômetros de profundidade, numa configuração perfeita – e imprescindível – para a formação de campos de petróleo.

 

  • Aspas

    Não podemos tratar esse recurso de forma exclusivista. Apostar todas as fichas no pré-sal é perigoso"

Em qualquer lugar do mundo, a formação de petróleo resulta de uma “conspiração”, como costumam dizer os geólogos. Ou seja, ela depende de uma sequência ordenada de eventos geológicos que dá origem a três camadas rochosas bem definidas. Por baixo, é preciso ter uma “rocha geradora”, onde ficou aprisionada grande quantidade de matéria orgânica. É nela que se formam os hidrocarbonetos. Logo acima, há que se ter uma “rocha reservatório”, que, no caso da nova reserva brasileira, são os carbonatos microbianos altamente porosos para onde o óleo e o gás migram em busca de áreas de menor pressão.

 

Finalmente, por cima das duas, é necessário algo que impeça o escape dos hidrocarbonetos, uma “rocha selante”, função que, no caso brasileiro, é cumprida pelo sal.

 

Desafio carbonático
Do ponto de vista exploratório, vencer a profundidade e, sobretudo, a espessa camada salina (que se deforma à medida que é perfurada) é, de fato, um grande desafio, mas não maior que o de conhecer as características das rochas carbonáticas microbianas onde o petróleo do pré-sal está alojado. Segundo Dias-Brito, embora sejam encontradas em diversas partes do globo, tanto no mar como em terra, a costa brasileira é o único lugar, pelo menos até agora, em que esse tipo de rocha guarda hidrocarbonetos. Logo, nem a Petrobras, nem ninguém, tem experiência no assunto.

Foto: Guilherme Gomes/Unesp Ciência

 

Diferentemente da área do pré-sal, as demais reservas brasileiras de petróleo têm outra origem geológica, bem mais recente. Elas se localizam acima da camada de sal, e os hidrocarbonetos, na forma de óleo ou gás, estão alojados em arenitos turbidíticos, um tipo de rocha formada pelo movimento intenso de águas turvas, carregadas de areia e lama. É o caso dos reservatórios da Bacia de Campos, na costa fluminense, exemplifica o geólogo da Unesp. “Essas correntes transportaram quantidades brutais de areia da plataforma continental para áreas profundas da bacia há 24 milhões de anos, o que provavelmente ocorreu por causa do rebaixamento do nível do mar.”

 

Conhecer melhor a rocha reservatório do pré-sal é um ponto crucial nos planos da Petrobras para que a exploração dos novos campos da Bacia de Santos ocorra com sucesso. Para isso, a empresa aliou-se ao Departamento de Geologia Aplicada do IGCE. Lá será criado um centro avançado de pesquisas e ensino sobre geologia do petróleo, o UNESPetro, com foco em rochas carbonáticas. A inauguração do prédio está prevista para abril de 2010. A estatal pretende investir mais de R$ 10 milhões na iniciativa. Segundo Dias-Brito, que coordena o projeto, um dos alvos de investigação é a porosidade e permeabilidade dessas rochas e seus padrões de distribuição nos planos vertical e horizontal. “Isso é muito importante para simular o comportamento dos fluidos nesses reservatórios”, explica.

 

Efeito no clima
Além das rochas carbonáticas microbianas, há mais duas características – uma boa e outra ruim – que tornam o petróleo do pré-sal especial. A primeira está no fato de ele ser de melhor qualidade que o das reservas pós-sal, uma vez que tem um maior teor de hidrocarbonetos mais leves – mais valorizados pela indústria petroquímica porque dão origem a derivados mais nobres.

Isso foi possível por conta da profundidade das rochas carbonáticas e da presença da camada de sal, que impediram a penetração de bactérias que degradam as frações voláteis dos hidrocarbonetos. Os arenitos turbidíticos da Bacia de Campos, por exemplo, não tiveram a mesma sorte. Por estarem muito mais próximos do leito marinho, os micro-organismos acabaram entrando nos reservatórios.

 

A má notícia é que com os hidrocarbonetos, há um alto teor de gás carbônico no pré-sal. O que, em tempos de aquecimento global, é visto com maus olhos por ambientalistas – o CO2 é o principal gás de efeito estufa. As razões ainda não são compreendidas e a questão deverá ser respondida com os avanços nos estudos sobre o pré-sal, acredita Dias-Brito.

 

A Petrobras, por sua vez, afirma que esse gás não será despejado na atmosfera. Uma das possibilidades em estudo é sua reinjeção no próprio reservatório, o que, de quebra, elevaria a pressão dentro dele aumentando o volume recuperável de óleo e gás, já que, com seu esvaziamento, a extração do que resta em seu interior fica cada vez mais difícil.

 

Para isso, no entanto, a empresa precisa conseguir separar o CO2 do gás natural – tarefa que não é nada simples e certamente aumentará o custo do produto final. O desafio é construir plantas compactas para fazer a separação, o que deverá ser feito em terra, pelo menos no projeto piloto de Tupi, segundo a assessoria de imprensa da companhia.

 

Mas ainda que todo o gás carbônico do pré-sal seja reinjetado no fundo da Terra, obviamente o destino do óleo e do gás que vêm dele é serem refinados, vendidos e queimados, gerando CO2 que será liberado por escapamentos e chaminés na atmosfera. Justo quando em todo mundo há uma pressão para que se diminuam as emissões do gás por queima de combustíveis fósseis e se invista mais em fontes renováveis de energia.

 

Com a proximidade da COP-15, a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, que será realizada em dezembro em Copenhague com o objetivo do estabelecimento de metas para a redução dessas emissões, é o caso de questionar: qual será o impacto do pré-sal nas políticas públicas brasileiras sobre o clima?

 

Para Dias-Brito, apesar das grandes reservas identificadas recentemente, a perspectiva para as próximas décadas ainda é de escassez desse recurso, tanto pelo aumento do consumo mundial como pela rarefação na descoberta de novos campos. “Em 2030, o mundo estará mais dependente de petróleo do que hoje, conforme indicam entidades internacionais que lidam com o assunto”, cita o pesquisador.

 

Para ele, as descobertas brasileiras chegam num momento estratégico. “Com os recursos advindos da produção do petróleo do pré-sal, o Brasil poderá investir de forma consistente em programas tecnológicos para geração de energia ‘limpa’. Isso nos permitirá ingressar de maneira mais robusta na fase pós-petróleo.”

 

O físico José Goldemberg, professor da USP e especialista em recursos energéticos, discorda. Para ele, há o risco de desviar para o pré-sal investimentos que poderiam ser aplicados já em biocombustíveis e energia eólica, por exemplo. “Não podemos tratar esse recurso de forma exclusivista. Apostar todas as fichas no pré-sal é perigoso”, diz.

 

Segundo ele, a ideia de que o petróleo está acabando é controversa. “O que está se esgotando é o petróleo ‘fácil’, restará o de difícil acesso, que exige tecnologia de vanguarda”, acrescenta, citando como exemplo, além do pré-sal, as areias betuminosas da província de Alberta, no Canadá, onde está a segunda maior reserva mundial, depois do campo de Ghawar na Arábia Saudita. “A perfuração de um poço no pré-sal pode consumir entre US$ 100 e US$ 500 milhões, e a taxa de sucesso pode não ser tão alta.”

 

Cedo ou tarde, no entanto, o petróleo deve acabar. E, diferentemente do que acontecia no passado, os novos donos desta riqueza já não podem simplesmente agir como senhores do mundo. O clima mudou e, daqui para a frente, eles terão de se justificar perante a sociedade.

 

Atividade sísmica também traz impactos
A atividade sísmica para prospecção de petróleo pode estar colocando em risco toda a fauna marinha. A falta de pesquisas sobre esse impacto, no entanto, torna o tema altamente controverso. Suspeita-se que o encalhe de golfinhos e baleias nas praias pode ter relação com os pulsos sonoros disparados pelos navios de sísmica. Tartarugas também poderiam ser afetadas, desviando-se de suas rotas de migração. Algumas evidências sugerem que a atividade tenha ainda efeitos negativos sobre a pesca comercial, por afugentar os peixes, além de possivelmente alterar seus padrões de acasalamento e desova.


Para realizar pesquisa sísmica na costa brasileira, as empresas precisam de uma licença ambiental do Ibama. Para isso, devem apresentar um estudo de impacto ambiental, seguindo as normas do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama), que, desde 2004, são específicas para esse tipo de atividade. Há zonas de restrição, como as águas rasas (até 400 metros) e o entorno do Atol de Abrolhos, no sul da Bahia, que é área de proteção de baleias jubarte.

Voltar